quarta-feira, 16 de abril de 2014

No solado da rabeca

Agradecimentos especiais a Patrícia Chammas


               Há quem diga que nossa cultura vem sendo dizimada a cada dia pela mídia que chega às grandes massas. Eu já tenho uma opinião que vai de encontro a essa crença: se você procura, você acha um CD como o “Giro Solto”, segundo do grupo Pé de Mulambo, que se autodenomina um “pé-de-serra power trio”. Ouvir esse CD é confirmar a propagação respeitosa da cultura nordestina, mostrando seus ritmos e sua poética peculiar.  
            Formado há sete anos pelo paulista Filpo Ribeiro (rabeca, viola caipira e voz principal), e os pernambucanos Guluga e Rone Gomes (ambos percussão e vocal), o trio aposta na rabeca com seu timbre rasgado, deixando o fole das sanfonas de oito baixos, ou de 120, descansando. Filpo, apesar de ser paulista, deve ter bebido muito da fonte de Jackson do Pandeiro para trazer o coco bem cantado na ponta da língua, ou ter passado noites memoráveis na ciranda praieira de Lia. Antes de começar a análise deste CD, faço um apelo aos três mosqueteiros que não abandonem o barco, como aconteceu com os meninos do Mestre Ambrósio (1992-2004).
            “Mulambo vem de molambo mesmo, uma referência à roupa surrada. É para qualificar um som feito sem ‘volteio’. A gente ensaia e cria arranjos, mas gosta que tenha esse lado agreste, pé no chão. Também é uma música dançante, de dançar descalço, até o pé ficar sujo”, descreve Filpo.
            Um aboio conduzido pelo lamento da rabeca e a voz de Filpo dão as boas-vindas à audição deste CD cheio de vida. Essa é “Canto Torto I” (Filpo Ribeiro). Dando continuidade, ouve-se a poesia brejeira que vem do casamento entre a rabeca, a zabumba e o triângulo, em “Canto Torto II” (Filpo Ribeiro). Um xote para se dançar coladinho, “bucho com bucho”, é a proposta da terceira faixa “Não Tem Mais, Não” (Jonathan Silva/Filpo Ribeiro). Virado na gota serena e com a muganga de seu Jackson do Pandeiro, é difícil ficar com o esqueleto parado ouvindo esse autêntico coco “Virado no Mói de Coentro” (Filpo Ribeiro). De posse de uma viola de 10 cordas e repousando um tanto a rabeca, Felipo, Guluga e Rone nos convidam a viajar nesse “Baião Alinhado” que me fez lembrar do mestre Dominguinhos. Fechei os olhos e ouvi seu fole chorar.
            O Pernambuco Guluga nos chama mais uma vez para dançar, agora ao som de seu xote “Barulhinho Bom”. Um samba bem conduzido pelos meninos do Pé de Mulambo é o que ouviremos em “Cataia” (Jonathan Silva/Filpo Ribeiro). O primeiro forró do CD, “Até o Sol Raiar” (Júnior Cabloco), nos remete a uma sala de chão de barro batido nas festas juninas. A pegada é boa pra dançar no bate-coxa no meio do salão até amanhecer. A ciranda de Lia de Itamaracá é lembrada nesta música-título do CD, de sonoridade maravilhosa, gravado em apenas três dias, e praticamente ao vivo “Giro Solto” (Rone Gomes/Marcos Alma). Mais um xote pra se dançar: “Não Maltrata o Cabra Assim” (Guegué Medeiros/Ricardo Ribeiro/Marcos Alma). Um solo de pífano no estilo Sebastião Biano ouviremos no belo baião “A Vida é Tão Boa” (Júnior Cabloco). Na 12ª faixa ouve-se “Éter do Desejo” (Meramolim). Para finalizar essa celebração, seguimos com “Forró de Lampião” (Rone Gomes/Marcus Alma), o maracatu rural “Minha Toada” (Nilton Júnior) e o samba “Devoto Cantador” (Rone Gomes/Marcos Alma).
            Que a mulambada dure enquanto houver música pra se ouvir.            

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